15 dezembro 2007

Valdice, a minha vó que veio da fazenda Quixaba (parte I)

Valdice costuma dizer que nasceu em 20 de março de 1936, apesar de ressaltar que, “na verdade”, nasceu em 6 de fevereiro do mesmo ano. “Mas fui registrada em 20 de março”, sempre esclarece. Tentando evitar a confusão e duas datas para comemorar o mesmo aniversário, costumamos dar-lhe parabéns no dia 6. Se antes ou depois, ela confirma que nasceu naquele fevereiro, sob o signo de Aquário, o qual sempre caça com o indicador nas páginas do horóscopo, enquanto o olhar se aperta por trás dos óculos de leitura. No rol dos mestres do zodíaco, destaca-se em sua predileção o João Bidu, o astrólogo da editora Alto Astral, uma das grandes empregadoras de jornalistas do interior de São Paulo, em Bauru. João Bidu é o carro-chefe das produções astrológicas da Alto Astral e Valdice uma de suas fiéis leitoras. Há um ano ela veio a Bauru para uma visita. Quem a trouxe foi Bianca, sua primogênita. Diante da falta de atrativos na cidade para a curta viagem lembramos do óbvio: a levaríamos ao prédio da editora, no improviso mesmo, sem saber se o dito cujo estaria por lá. Estava. O guru Bidu desceu, levantou-se da sua mesa e foi ao térreo, onde o encontro se deu. A aquariana Valdice viu o rosto do homem que há anos escreve o que seu indicador caça. E eu e minha tia ficamos ali, ouvindo a troca de confidências zodiacais. Minha vó ficou satisfeita e eu também. É que certa vez perdi a paciência, ocasião em que embiquei um longo discurso para ela, tudo para minguar a sua crença nos astros, expondo a charlatanice desses escrivões sem escrúpulos. Naquele dia do encontro saí aliviado, com o astral nas alturas. De alguma maneira me redimira. Valdice nem lembrava mais dos meus discursos chatos e logo vi brotarem os exemplares de horóscopo em seu apartamento. Depois da minha desastrosa pregação, como o irmão mais velho que expurga a existência do Papai Noel da mente do seu irmãozinho de cinco anos, ela deixara as revistas de lado. Agora, voltara e me dava até mesmo a chance de simpatizar com o tal João Bidu. Essa supersticiosa, de paladar aprimorado, capaz de misturar melancia com arroz e feijão, nunca negou que azul é sua cor favorita e nem deixou número de bilhetes de ônibus, borboletas na varanda e coisas parecidas sem a devida atenção: sempre foram palpites quentes para o jogo do bicho.
Valdice de Jesus Espinoza é minha avó, que nasceu em uma fazenda, a fazenda Quixaba, a casa com grande jardim na frente, propriedade do seu avô, João Batista Maciel. Município de Campo do Brito, interior sergipano. Só partiu para outro lugar quando completou oito anos. A “cidade grande” tinha nome: Itabaiana. Na década de 40, era uma cidade pequena do Sergipe, mas foi capaz de gravar na sua memória a escola que freqüentou até a 3ª série. A Escola Professor Bezerra de Menezes, “que ainda está lá até hoje, com o mesmo nome”, garante. Antes da grande cidade de Itabaiana, onde morou 5 anos até partir novamente aos 13, trabalhou na lavoura da Quixaba. “Na fazenda a gente plantava milho, algodão, feijão, mandioca. Vendia em forma de troca por outros produtos. Quer dizer, tinha uma parte que era para nosso sustento e outra que vendíamos para comprar carne, outras coisas da cidade”, conta. A fazenda ainda existe? “Não sei se ela existe mais”.
Mas, não foi parar em Itabaiana por vontade própria, a motivação foi a “cisma” de sua mãe, a Maria Emília de Jesus, que tinha outros planos para a família, sempre prevendo um destino muito além das cercas da Quixaba sergipana. A cismada mãe “mandou” seu pai, o José Francisco dos Passos, ir para São Paulo, enquanto o restante da família foi para Itabaiana, para estudar, sob as rédeas da matriarca Emília, uma pioneira no Sergipe e a bisavó que não conheci. Conta-se, como um de seus feitos mais polêmicos, o fato de ter sido a primeira mulher das redondezas a montar cavalo como homem, igual aos “caba macho do sertão”, de pernas abertas sobre a sela. Deve ter se inspirado nas histórias do bando de Lampião e Maria Bonita que no passado pousara e banqueteara na Quixaba. “Acho que minha mãe já nasceu com umas idéias mais adiantadas. E meu pai não apitava nada, era ela quem mandava”.
Valdice não herdou o sobrenome Passos do pai. “Lá, só é dado o nome do pai se os seus pais são casados no civil, mas a minha mãe casou só na igreja”. José dos Passos também não nasceu em Campo do Brito ou Itabaiana. Veio de Macambira, uma “cidadezinha pequenininha”. Quando fez a vontade de D. Emília em 1947, e se foi para São Paulo, começou trabalhando na construção civil. No caminho passou pela capital e seguiu direto para o litoral, para Santos, onde logo arrumou emprego como carpinteiro.
Teve quatro irmãos ao todo. Depois do pai ter partido, depois de 1947, ouviu seguidamente D. Emília dizer que iriam acompanhar José. Partiriam para Santos em breve. “Ela não queria ficar lá no nordeste”, lembra. Ainda tentando atrapalhar os planos da mãe, escreveu carta ao pai, revelando os planos de D. Emília, que ficou tiririca, e a encostou na parede. “Você vai se ver comigo se escrever outra vez!”. Embora as irmãs de Emília a caçoassem, achando que era delírio aquela história de se mandar sem eira nem beira para São Paulo, o destino da família estava traçado poe sua mãe. Dois anos após José ter iniciado sua retirada, foi a vez da matriarca e seus filhos. Assim, minha avó teve de deixar para trás até Adalberto, filho de dono de cartório com quem teve um “namorico”. Com apenas 13 anos subiu num pau-de-arara, obediente à mãe, que vendeu tudo que tinham para a viagem que os levariam para longe de Sergipe. Depois de São Paulo, mais um trecho, e desembarcaram em 13 de março de 1949 na estação do Valongo, na Baixada Santista. José Francisco ainda murmurou na chegada da esposa: "Mas, Emília, porque vocês vieram, meu Deus?".
Por volta de 1950, muitos nordestinos haviam feito a dura travessia que se destinava a desembarcar em São Paulo ou adjacências e, inevitavelmente, num incomum caminho por terra, em cidades como Santos, exatamente a cidade-chegada de tantos imigrantes que vieram do além-mar para o Brasil. Descendo o Nordeste, “os caminhões vinham cheios, chapados”, como lembra minha avó. O próprio caminhoneiro do pau-de-arara que a levara para São Paulo fazia a mesma viagem todo mês, com o caminhão sempre cheio dos que deixavam as suas Quixabas para trás.
Quando chegaram em Santos, Maria Emília e os filhos se estabeleceram em um alojamento da firma que José trabalhava. Cada empregado tinha seu cômodo. Enquanto isso, o mestre-de-obra da construção em que José estava empregado vinha construindo um chalé no morro da Nova Cintra. Chalé pronto e, vinte dias depois, foram para lá morar. Depois, veio a vez do morro do Pacheco, onde nasceu a sua irmã Vera Lúcia, em 2 de maio de 1950. “O Carlinhos nasceu em 5 de outubro de 1952, quando morávamos na rua João Pessoa”, recorda. Sobre as primeiras moradas, como no morro da Nova Cintra, lembra: “Faz anos que não subo por ali, mas a casa era logo na subida, não existiam tantas casas no morro na época. Santos era cheia de bondes, para tudo era bonde e o centro da cidade já era grande”. Por entre bondes, minha vó guardava consigo a saudade da sua terra. “Por mim, eu tinha voltado na mesma hora”, garantiu.
Em Santos não estudou mais, logo arrumaram trabalho, inclusive para as crianças. “Era para catar café, a gente catava para exportarem o café bom”. Nos armazéns, rodeada de outras crianças, ás vezes precisava esconder-se, porque o Juizado de Menores não permitia crianças naquele ambiente, porque o cheiro do café era muito forte. “Trabalhei assim bastante tempo, até o Juiz dar em cima e minha mãe tirar a gente”, diz.
Com o trabalho nos armazéns proibido, foi trabalhar em “casa de família”. Primeiro na rua São Francisco, na casa do Dr. Antônio Augusto Ramos, “um oculista”. Depois, em um aviário, “mais na parte doméstica”, ressalta. Mais tarde, voltou a trabalhar com a família do Dr. Antônio, dessa vez na rua Barão de Paranapiacaba, perto do Hospital Ana Costa. “De lá, fui trabalhar em outra casa de família, da família Lobo Viana, na rua Anália Franco. Lá eu trabalhei por 8 anos, saí de lá para casar”. Foi na época em que trabalhou na Anália Franco que viajou à São Sebastião, para pular o carnaval na casa dos patrões, carnaval que lembra até hoje. Nessa época, também fez o curso de Corte e Costura. Entrou na casa dos Lobo Viana com 15 anos e saiu com 23, “para casar”. Enquanto trabalhava freqüentou, na avenida Rodrigues Alves, as aulas da Escola de Corte e Costura São Geraldo. “Eu que fui atrás, me formei e depois que casei me tornei uma costureira profissional, com muita freguesia, trabalhando em casa”, relembra.
Quando se casou, os pais já não estavam mais em Santos. Tinham ido para São Paulo, “foram morar lá no Jaçanã”. Ainda lembra quando um jornal noticiou que a cidade de Santos seria inundada, seria arrasada e que o mar tomaria conta de tudo. “A minha mãe ficou morrendo de medo, disse que não ficava aqui, não. Eu não quis ir para São Paulo. Foi todo mundo, menos eu”, diz corajosa.
Na capital, Maria Emília também costurava, trabalhava para uma confecção de shorts. “Em São Paulo, onde a minha mãe costurava, era muito longe de onde morava. Do Jaçanã para o Centro é longe demais”, se queixa. Depois que se casou, penava quase todo mês para visitar a mãe. Era preciso um ônibus de Santos para São Paulo, depois atravessava a praça da Sé, alcançava a rua XV de Novembro, uma parte da avenida São João, entrava no Vale do Anhangabaú e subia em mais um ônibus com destino ao Jaçanã. Lá, José Francisco persistia na construção, o que o levou a ser candango em Brasília mais tarde. Aliás, a nova capital federal , inaugurada em 21 de abril de 1960, forçou José a esperar a data para só então retornar a Santos e batizar a primogênita de Valdice, Bianca de Jesus Espinoza, nascida em 20 de fevereiro do mesmo ano. Em 1961, no dia 31 de outubro, nasceria Patrícia de Jesus Espinoza, minha mãe e, à 25 de setembro de 1968, Cláudia de Jesus Espinoza.
O Espinoza, claro, é sobrenome que veio do seu marido, meu avô, que também não conheci. Faleceu um ano antes do meu nascimento. Jorge Brim Espinoza era como se chamava. Trabalhava no antigo Banco de Crédito Real de Minas Gerais, na tradicional rua XV de Novembro, em Santos, onde começou como contínuo e depois virou escriturário. Os dois se conheceram no baile de formatura da Escola de Corte e Costura. “Na época, as minhas duas futuras cunhadas estudavam na escola e o levaram para o baile”. No mesmo dia Jorge pediu seu telefone. Era 23 de abril de 1955.

4 comentários:

Anônimo disse...

Com tanto detalhe interessante é até infame dizer isso, mas adoro a passagem sobre o João Bidu! Hahaha! E quando vc vem para a capital, Santos?! Espero vc e a Ju...
Bjão!

natalia disse...

a passagem do joão bidu não é só boa: está entre as melhores histórias que já ouvi na vida...

Unknown disse...

Oi Bruno sou a sua tia da Bahia , quero muito saber noticias de sua mãe Patricia.
Ninguem me fala nada, po favor me diga como ela está , amo sua mãe.
Tenho 15 anos q não vou em Santos, conheci vc. Bebê, cuidei de vc.
lilian.espinoza@hotmail.com
Bjs.
Sua Tia q te ama

Unknown disse...

Chorei de ver , retratado um passado tão perfeito, mas faltou Beth Espinoza e Nely Espinoza, Antonia Espinoza, q moraram juntos na Barão de Cotegipe e se ajustsram mutuamente como famili.

Te Amo

Sua Tia.....

Lilian Espinoza