10 setembro 2005

Então deixa eu dormir

Durmo, fecho na cama um livro qualquer que expulsou Neruda da minha cabeceira e sonho com um velho que me diz: 'A gente não deixa nada nesta vida. Não nos foi dado o poder do deixar, do permitir. Quem disso duvida é porque não escorregou da nau ainda.

Eu costumava dizer que não deixaria as fraquezas das crendices humanas - todas falhas, julgava eu - me corromperem. Mas corromperam não só a mim, meu filho. Corromperam todo o meu embolorado ceticismo também.'


'Como assim?', perguntei.


'É que eu pensava: como tudo é uma tristeza só, eu, na caridade de sempre, deixo histórias sem os finais que merecem, a fim de dar vez aos otimistas para que conjuguem todo o delírio das variáveis de uma felicidade tola e grudenta. Aquela felicidade geral, das mentes sem juízo. Felicidade que não deixava de ser vã para a minha razão. Nem chamava de rara, meu caro. Inexistente, essa era a palavra.'


'E?', indago ansioso.

'E eu me retirava. Assim, como quem nada quer dos salões. Ficava na espreita, de olhos bem abertos para ver as cartadas finais que o público teimava em sentenciar. Todos eram juízes dos mundos alheios, mas nunca dos seus, eu pensava. O que é uma verdade, mas incompleta. E, como animal tão falho quanto os que me cercavam, me mandava embora com a impressão estúpida de ser o detentor da moral e das morais. Ledo engano!'

'E depois disso tudo?', perguntei ao velho que já não mais pertubava meu sono.

'Ah, meu rapaz! Depois, como ironia do destino, houve um tempo em que chovia. E eu, na inconsolação das noites e das palavras, passei a procurar aconchego nos travesseiros e lençóis de quem já sabia e me aguardava. Fechava os olhos depois de fechar a boca para um último gole e com um beijo na testa já podia dormir certo da mesma felicidade que antes me parecia besta. Ainda rara, confesso. Mas só minha desta vez.'

'A alegria não lhe recolhia mais a mão, então?', quis saber.

'Não. A vida veio, foi e continuou, cheia do novo. Fiquei bobo e piegas, feito aquelas vítimas dos meus deboches. Mas só ficava assim para quem me aguardava naqueles travesseiros e lençóis. Sabe como é, né? A gente tem que manter a firmeza diante do público!'

'Sei', eu disse em meio a uma risada.

'E, assim, tudo se fez. Me perdi, me encontrei, me achei. Meu pôr-do-sol continua o mesmo. Não sou louco não, mas tenho tido a mania de falar comigo mesmo diante do espelho. E mesmo hoje, cheio das palavras e clichês e flores, só acolho os pássaros recém-chegados em minha janela. Neruda, longe da minha cabeceira, só volta se for para me lembrar que sou primavera e cerejeira. Nem mais o pássaro do Vinícius dá tanto as caras por aqui. Só a janela do Vininha. Dessa vez com um bobo no lugar do pássaro pedinte de versos tristes. Na janela restou um bobo feliz que ao amanhã nada mais diz. Um bobo feliz.'