12 janeiro 2006

Santos Espelhos

Santos Espelhos






Talvez seja esta uma das poucas vezes que escrevo na primeira pessoa aqui, já devo ter escrito antes, desculpe-me a má memória. Mas a questão é que se faz necessário registrar meu retorno e estada em minha terra natal, enquanto se aproxima outro retorno a minha estada no interior paulista, que prometia quatro anos ainda ontem e que me promete agora apenas dois, no sofrido aguardo do adeus aos amigos, aos colegas e aos conhecidos desconhecidos em Bauru.
Em Santos nesses dias faz calor. O calor de mormaço, tão presente em minha infância e tão estranho hoje. A praia continua lá, isenta de tsunamis nos trópicos, recheada do mesmo jardim, mais bem cuidado e ainda cartão-postal.
Os que passeiam, passeiam. Paulistanos ou não, o encontro com o mar dos não nativos continua o mesmo. A busca do bronzeado num céu de nuvens e numa areia cinza. O mar, pouco limpo, menos sujo. O horizonte próximo, navios a zarpar, cruzeiro para os afortunados.
Santos me lembra cheiro de protetor solar em ruas com cara de São Paulo, que tentam São Paulo, que falam carioquês.
Já a noite, iluminada na orla e escura nas entranhas da periferia, é um convite ao passeio. Um passeio de gentes, de mosaicos, cachorros e chuvas de idosos a implorar ou mesmo forçar a passagem pelos carros que se fincam nos semáforos.
A cidade não me é estranha, mas ao mesmo tempo é. Hoje, quando saio as suas ruas, admiro-me com as esculturas praianas que me pareciam tão grandes na infância. Concreto encolhe?
Nesse mar de porto, férias que exalam cheiros e guarda-sóis, restaurantes e bares de sempre e um falar alto habitual, só não me estranho quando longe da praia, o que não é raro. Justo a praia que me acolheu tanto em outras orlas lá mais ao norte.
Só não me estranho, talvez, na hora que me vejo no espelho. Não um espelho qualquer. É o meu, só meu, que apenas aqui encontro. No litoral paulista inteiro, meu espelho é a casa que retorno. É o acordar e cozinhar cuidadoso de minha vó, a atenção de minhas tias, o crescer de meu irmão e primos. A saudade de meu pai também.
Quando eu subir a serra e atravessar para o cerrado do centro-oeste do estado, a lembrança será a mesma de anos atrás. O mormaço exalando em ventos aquele velho cheiro de protetor solar.

01 janeiro 2006

Ninfomania de A a Y

Oito da noite de São João, chuvinha fina no asfalto da Avenida Brasil e Antônio quieto diante do copo que acabara de esvaziar.

- “Ô companheiro! Desce mais um desse!”

A vida passara rápido para nosso Antônio. Naquele anoitecer continuava a ser mais um num mar de antônios e se embriagava disfarçando nada querer comemorar. Não pretendia celebrar uma vida curta, enquanto não se dava conta de que passara longe de ter sido pequena. Nascido no São João de 45, chegava aos sessenta caído e penoso de si mesmo.

Mulherengo de carteirinha, Antônio se apaixonara inúmeras vezes. Sua parceira fiel, no entanto, havia sido sua agenda de bolso. Nela, os nomes de todas transeuntes pela sua juventude estavam rabiscados, de A a Z.

Quanto fez outra careta após outro gole de pinga, da boa, da branquinha, Antônio se amargurou mais em lembrar que todos os momentos foram cheios de gozo, todas as mulheres com o poder que só elas têm nesse mundão do Deus bom e todas com um “que” de defeito fatal.

Lembrou-se de Dora, a estudante de Direito que era uma mestiça danada. Rebolava mais que chocalho aceso. Uma ninfeta. Dedicou deliciosos momentos no passado ao nosso desolado amigo senil. Pena que daquele tempo Antônio só recordava de uma coisa de Dora: uma bêbada que botava tudo a perder. Sempre.

Também lembrou-se de Catarina. Mulata bem desenhada, seios fartos e empinados. Enchia Antônio de carinhos, mas tinha uma boca que fedia a cinzeiro de rodoviária. Num belo dia, em campanha antitabagista, ele esvaziou de vez este cinzeiro dos beijos seus. Para sempre.

Por fim, na cadeia de lembranças da fileira de mulheres do passado, recordou-se de Inês, outra mestiça. Exótica e desleixada Inês! Tão assim que de tanto comer chocolate criou mais tecidos adiposos em si do que gemidos de prazer em Antônio.

Com o bar a expulsa-lo, nosso aniversariante se retirou, receoso também de que sua nostalgia o matasse de saudades em pleno júbilo. Antes de finalizar os flashbacks, ainda na Brasil, lembrou-se de um fato. Todas elas, sem exceção, também não souberam conviver com uma obsessão sua: o sexo.

Isso era um dado novo, sem dúvida. Antônio, desgostoso eterno com os vícios e compulsões das mulheres, se dava conta de que não era imune a tal apetrecho da vida de qualquer ser. Tinha sua própria obsessão e ela atendia pelo nome de sexo.

Lastimando ser igual ao mundo, entrou em seu apartamento. Embora entendesse agora que não era vitima dos exageros delas, mas do seu também, tinha o que comemorar. Tinha seu vicio e, diferente de muitos infelizes que morrem sem desfrutar dos seus, havia penetrado em mais corpos que o Rei Salomão.

Pronto. Não havia do que resignar-se. Deitou as “putas tristes” de lado, apanhou a velha agenda e buscou um nome que nunca consultara.

Lá pela zona dos zês estava ela. Lá, figurava Zélia. Talvez a única não vitimada em sua existência pelo apetite sexual do nosso aniversariante.

Sorridente, Antônio sentiu-se como no São João de 68, quando na Brasil não chovia. Caçou o telefone e discou sem pensar o número de Zélia. Havia uma batalha a ser vencida. Um último gole para sua compulsão vertiginosa.

Aguardando ser atendido, com o telefone ainda em mãos, se viu diante do espelho. Foi nessa hora, entre os bastidores e a entrada no front que lhe aguardava, que babando no guincho aproveitou para dizer para si mesmo:

- “Feliz aniversário Antônio. Feliz.”