Meu avô nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 19 de janeiro de 1937. Algumas pessoas, principalmente minha tia Bianca, dizem que até conseguem imaginar nossa relação se estivesse vivo. Eu teria sido o seu primeiro neto e, dizem línguas mais exageradas, herdei uma veia boêmia, bem ao seu estilo, do vô Jorge. Na verdade, não tive o provável prazer de chamá-lo “vô”, nem de nada. Mas, é certo que ele se perde constantemente em minhas imaginações, em bancos noturnos com dedilhadas suas no violão, neto e avô, num sonho muito pessoal, nunca vivido e de outro mundo particular.
Voltando para a vida concreta, sabe-se que ele mudou ainda pequeno para Santos, onde cursou o primário. “Também veio menino”, pontua Valdice. Seu pai era técnico de máquinas. “Largou a minha sogra lá (em Pelotas). Acho que depois ele se arrependeu e mandou minha sogra vir”, supõe. Chamava-se Carlos Espinoza, que trabalhou na Singer em Santos durante muitos anos, na rua Martim Afonso. Era casado com Antônia Brim Espinoza, costureira de cortinas e minha bisavó, falecida em 2003. “Esse sobrenome, o Espinoza, vem da Espanha. O pai do meu sogro, do Carlos, era espanhol, mas não me lembro do nome”, conta minha avó. Os personagens em questão são meus tataravôs, o casal Alfredo Espinoza e Maria Balbina Espinoza. Enquanto isso, a minha bisavó Antônia era a filha de Agenor Brim e Elisabeth Garcia Brim.
Jorge e Valdice namoraram por dois anos, aos quais se somaram mais dois anos de noivado. Se casariam em 1959, na Igreja do Embaré. Para poder namorá-la, precisou do consentimento até dos patrões da “casa de família”. Como era o namoro? “Ele me buscava em casa, todo domingo a gente ia para o cinema. Era o Roxy, o Atlântico”. Só bem depois de casados Jorge levou Valdice à Pelotas, para conhecer a “sua terra”. Em 1973, depois de um desentendimento, saiu do banco. Aliás foi graças a uma indenização do banco que a viagem à Pelotas foi possível. Chegou a trabalhar como fotógrafo e representante de distribuidora de bebidas. Morreu em 1982.
Bianca, a primeira filha do casal, estudou no colégio Canadá, mais tarde no Avelino da Paz Vieira, onde cursou o colegial. Cursou Administração no CEUBAN (Centro Universitário Bandeirantes), com auxílio de crédito educativo. “Eu comecei a pagar, mas não tínhamos mais condições, por isso pedimos o crédito”, conta Valdice. Em 1982, Bianca se formou. No mesmo ano, o Corinthians havia sido campeão paulista de futebol. Mas, o corintiano Jorge não viu nada disso. Meu avô era torcedor do time do Parque São Jorge, mas tinha um álbum com recortes do Santos de Pelé, bem documentado e rico em informações e fotos. Parece incoerente, mas, é mais uma pérola sua. Esse álbum existe até hoje. E eu, mesmo sendo bom santista, o admiro certo de que meu vô corintiano foi um apaixonado pelo futebol, acima de tudo, inclusive de camisa de time. “Ele conhecia o Pepe, o Pelé, essa turma toda. Quando ele foi trabalhar como fotógrafo particular acabou tendo contato com esse pessoal”. O que ele mais gostava de fazer? “Tocar violão, cantar e sair à noite”, diz. Vocês continuaram a sair depois de casados? “Algumas vezes, depois tínhamos as filhas para criar, muito trabalho, né?”.
Minha vó guarda boas lembranças dos carnavais antigos. Principalmente da época de solteira. Lembra que todo mês de novembro já saíam as letras das marchas do próximo carnaval. “Todo mundo comprava as revistas, para aprender as marchinhas”, diz. “Íamos para o teatro, o Coliseu, era lá o carnaval, o baile, o lança-perfume jogado nas nucas, as pessoas se divertiam bem, não é como hoje, essa baixaria”. O melhor carnaval, aquele inesquecível para ela, foi o vivido em São Sebastião. Mas, com o Jorge, não teve muito carnaval, não. Porque chama o vô de safado, vó? “Não, não é assim tão safado. É que a mulherada dava em cime dele, e ele gostava de sair até mais tarde com o violão, depois voltava de madrugada assobiando”.
Mas, as maiores saudades não são dos carnavais nos recantos urbanos do sudeste brasileiro. Quando fala da fazenda lá de Quixaba, Valdice não fala como quem conta um tempo de dificuldades. Reconhece que tinham o alimento necessário, os leites e derivados retirados na fazenda, além de uma plantação de mandioca próxima a um rio. Havia cana também e se fazia farinha, vendida nas feiras. Em janeiro de 1986, pisou novamente no Sergipe, acompanhada da terceira filha, Cláudia, na época com 17 anos. Manteve nesse tempo todo, desde a infância, o contato com os parentes de lá. D. Maria Emília, a incentivadora da migração, morreu jovem, vitimada por um câncer de útero, em 1964, aos 48 anos. Está enterrada na Vila Formosa, em São Paulo. José Francisco viveu até setembro de 1986, quando faleceu com 77. Foi enterrado no cemitério da Areia Branca, em Santos. Eu só tinha 3 anos, mas lembro do seu chapéu e cachimbo, quieto na área de serviço.
Como foi a recepção em Itabaiana para a senhora e a tia Cláudia em 1986? “Foi aquela festa. Eu saí de lá com 13 e só voltei com 50 anos”. Houve até faixa, feita pela “parentada”, para a prima nascida em Santos, que dizia: “modelo de Santos”. Valdice achou que a cidade expandiu bastante. Lembra que gostava de comer fatada de carneiro, uma espécie de buchada, na infância. Mas, em 1986, o carneiro agrediu o estômago: muito tempo se passara e o corpo já desconhecia aquelas iguarias. A rapadura continua sendo bem-vinda. Até hoje, foram quatro retornos à terra natal. E a quinta, quando será? “Não tenho mais vontade de pegar estrada”.
Aos 72 anos, suas lembranças mais fortes são algumas saudades bem distantes. Quem a conhece diz que é uma pessoa prática, de muita correria, inquieta quando fica apenas descansando. Gosta de coisas práticas. Pouco guarda documentos e fotos. Mas, ninguém deixa de lembrar suas idiossincrasias, sua história, seu esforço para sustentar três filhas, viúva. Lembro que me criou, ao lado do meu irmão, durante boa parte da minha infância. Depois de crescido, ainda morei dois anos com ela. Sempre se dedicou com carinho aos netos, bem naquele estilo da vó que se amolece um pouco mais com os netos, quando comparada ao relacionamento com os próprios filhos.
Fiquei pensando em mil coisas. E se ela não tivesse vindo com a sua mãe? Se tivesse ficado lá na sua fazenda Quixaba? Podem até dizer que as lembranças da infância sempre serão mais doces, do mesmo jeito que lembramos das coisas, das construções, como se tivessem sido maiores quando éramos pequenos. Mas, quando minha vó falou da fazenda dos seus oito anos, ela me pareceu um lugar melhor de se viver. Perguntei, ao final da entrevista, se havia e qual teria sido o dia mais feliz da sua vida. Ela desviou: “Olha, já deve fazer tanto tempo, que eu nem sei mais”. Guardei suspeita. Acho que foi algum dia na Quixaba, perdido nas lembranças mais profundas do seu passado, naquelas terras de pastos verdes, rios, casa grande e terra firme que até Lampião já pisou. No outro dia, mandou me dizer que arrumara uma resposta. Era um arranjo, mas só reforçava a minha antevisão, quase joão-biduriana. Dizia: “pode colocar aí que foi o dia que eu pisei de novo na minha terra”. Está posto, vó.
Voltando para a vida concreta, sabe-se que ele mudou ainda pequeno para Santos, onde cursou o primário. “Também veio menino”, pontua Valdice. Seu pai era técnico de máquinas. “Largou a minha sogra lá (em Pelotas). Acho que depois ele se arrependeu e mandou minha sogra vir”, supõe. Chamava-se Carlos Espinoza, que trabalhou na Singer em Santos durante muitos anos, na rua Martim Afonso. Era casado com Antônia Brim Espinoza, costureira de cortinas e minha bisavó, falecida em 2003. “Esse sobrenome, o Espinoza, vem da Espanha. O pai do meu sogro, do Carlos, era espanhol, mas não me lembro do nome”, conta minha avó. Os personagens em questão são meus tataravôs, o casal Alfredo Espinoza e Maria Balbina Espinoza. Enquanto isso, a minha bisavó Antônia era a filha de Agenor Brim e Elisabeth Garcia Brim.
Jorge e Valdice namoraram por dois anos, aos quais se somaram mais dois anos de noivado. Se casariam em 1959, na Igreja do Embaré. Para poder namorá-la, precisou do consentimento até dos patrões da “casa de família”. Como era o namoro? “Ele me buscava em casa, todo domingo a gente ia para o cinema. Era o Roxy, o Atlântico”. Só bem depois de casados Jorge levou Valdice à Pelotas, para conhecer a “sua terra”. Em 1973, depois de um desentendimento, saiu do banco. Aliás foi graças a uma indenização do banco que a viagem à Pelotas foi possível. Chegou a trabalhar como fotógrafo e representante de distribuidora de bebidas. Morreu em 1982.
Bianca, a primeira filha do casal, estudou no colégio Canadá, mais tarde no Avelino da Paz Vieira, onde cursou o colegial. Cursou Administração no CEUBAN (Centro Universitário Bandeirantes), com auxílio de crédito educativo. “Eu comecei a pagar, mas não tínhamos mais condições, por isso pedimos o crédito”, conta Valdice. Em 1982, Bianca se formou. No mesmo ano, o Corinthians havia sido campeão paulista de futebol. Mas, o corintiano Jorge não viu nada disso. Meu avô era torcedor do time do Parque São Jorge, mas tinha um álbum com recortes do Santos de Pelé, bem documentado e rico em informações e fotos. Parece incoerente, mas, é mais uma pérola sua. Esse álbum existe até hoje. E eu, mesmo sendo bom santista, o admiro certo de que meu vô corintiano foi um apaixonado pelo futebol, acima de tudo, inclusive de camisa de time. “Ele conhecia o Pepe, o Pelé, essa turma toda. Quando ele foi trabalhar como fotógrafo particular acabou tendo contato com esse pessoal”. O que ele mais gostava de fazer? “Tocar violão, cantar e sair à noite”, diz. Vocês continuaram a sair depois de casados? “Algumas vezes, depois tínhamos as filhas para criar, muito trabalho, né?”.
Minha vó guarda boas lembranças dos carnavais antigos. Principalmente da época de solteira. Lembra que todo mês de novembro já saíam as letras das marchas do próximo carnaval. “Todo mundo comprava as revistas, para aprender as marchinhas”, diz. “Íamos para o teatro, o Coliseu, era lá o carnaval, o baile, o lança-perfume jogado nas nucas, as pessoas se divertiam bem, não é como hoje, essa baixaria”. O melhor carnaval, aquele inesquecível para ela, foi o vivido em São Sebastião. Mas, com o Jorge, não teve muito carnaval, não. Porque chama o vô de safado, vó? “Não, não é assim tão safado. É que a mulherada dava em cime dele, e ele gostava de sair até mais tarde com o violão, depois voltava de madrugada assobiando”.
Mas, as maiores saudades não são dos carnavais nos recantos urbanos do sudeste brasileiro. Quando fala da fazenda lá de Quixaba, Valdice não fala como quem conta um tempo de dificuldades. Reconhece que tinham o alimento necessário, os leites e derivados retirados na fazenda, além de uma plantação de mandioca próxima a um rio. Havia cana também e se fazia farinha, vendida nas feiras. Em janeiro de 1986, pisou novamente no Sergipe, acompanhada da terceira filha, Cláudia, na época com 17 anos. Manteve nesse tempo todo, desde a infância, o contato com os parentes de lá. D. Maria Emília, a incentivadora da migração, morreu jovem, vitimada por um câncer de útero, em 1964, aos 48 anos. Está enterrada na Vila Formosa, em São Paulo. José Francisco viveu até setembro de 1986, quando faleceu com 77. Foi enterrado no cemitério da Areia Branca, em Santos. Eu só tinha 3 anos, mas lembro do seu chapéu e cachimbo, quieto na área de serviço.
Como foi a recepção em Itabaiana para a senhora e a tia Cláudia em 1986? “Foi aquela festa. Eu saí de lá com 13 e só voltei com 50 anos”. Houve até faixa, feita pela “parentada”, para a prima nascida em Santos, que dizia: “modelo de Santos”. Valdice achou que a cidade expandiu bastante. Lembra que gostava de comer fatada de carneiro, uma espécie de buchada, na infância. Mas, em 1986, o carneiro agrediu o estômago: muito tempo se passara e o corpo já desconhecia aquelas iguarias. A rapadura continua sendo bem-vinda. Até hoje, foram quatro retornos à terra natal. E a quinta, quando será? “Não tenho mais vontade de pegar estrada”.
Aos 72 anos, suas lembranças mais fortes são algumas saudades bem distantes. Quem a conhece diz que é uma pessoa prática, de muita correria, inquieta quando fica apenas descansando. Gosta de coisas práticas. Pouco guarda documentos e fotos. Mas, ninguém deixa de lembrar suas idiossincrasias, sua história, seu esforço para sustentar três filhas, viúva. Lembro que me criou, ao lado do meu irmão, durante boa parte da minha infância. Depois de crescido, ainda morei dois anos com ela. Sempre se dedicou com carinho aos netos, bem naquele estilo da vó que se amolece um pouco mais com os netos, quando comparada ao relacionamento com os próprios filhos.
Fiquei pensando em mil coisas. E se ela não tivesse vindo com a sua mãe? Se tivesse ficado lá na sua fazenda Quixaba? Podem até dizer que as lembranças da infância sempre serão mais doces, do mesmo jeito que lembramos das coisas, das construções, como se tivessem sido maiores quando éramos pequenos. Mas, quando minha vó falou da fazenda dos seus oito anos, ela me pareceu um lugar melhor de se viver. Perguntei, ao final da entrevista, se havia e qual teria sido o dia mais feliz da sua vida. Ela desviou: “Olha, já deve fazer tanto tempo, que eu nem sei mais”. Guardei suspeita. Acho que foi algum dia na Quixaba, perdido nas lembranças mais profundas do seu passado, naquelas terras de pastos verdes, rios, casa grande e terra firme que até Lampião já pisou. No outro dia, mandou me dizer que arrumara uma resposta. Era um arranjo, mas só reforçava a minha antevisão, quase joão-biduriana. Dizia: “pode colocar aí que foi o dia que eu pisei de novo na minha terra”. Está posto, vó.
Um comentário:
Olá, achei bem interessante este assunto, estas recordações...
Eu gostaria de saber se tens alguma coisa, como carta, depoimentos, fotos ou outro tipo de material relacionado aos carnavais antigos de Pelotas, pois estou fazendo um trabalho acadêmico sobre os antigos carnavais de Pelotas. Parabéns pelos relatos...
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