29 julho 2008

FICÇÃO - Serafim

Matutar por Alzira, jamais. Figurasse nos dramas babosos, o sujeito sem eira a desabar, o Château Margaux reluziria estocado no peito. Não a branca fajuta, gritada sem licença no ouvido. Zumbido danado. Mas, quem mandou? Esse povo é formiga, teima e tropeça pelo Mercado, encontro marcado com o Xixi de Cobra, a escarlate saída na propaganda mole do pardieiro. “Amansa coração de corno infeliz” é como enganam. Se o da vez era Serafim, os veludos da tragédia do Velho Mundo são firulas a cargo de homem pela metade, tipo grã-fino, triste ou risadinha, nunca estalado nas pisadelas da vida. E Serafim era galhudo dito, sem a vergonha chorosa em admitir. Daí o destino ser todos os goles do Xixi de Cobra e a saudade banana de Alzira bandida.

O filho de D. Manteiga, a filha dum poeta de mentira, cresceu na pilha do jornal antigo do pai. Bunda nas manchetes, sentava bamba, imundo. Coceira vinha, espichava para a aula do velho. O último descabido foi “mulher é no cabresto”. Dia seguinte enterrava o sábio e embrulhava o aviso da véspera como do divino. Alzira só veio quando D. Manteiga avizinhou-se do pai na terra fofa, semana depois. O corte na oficina, serviço no “carro de baitola” do prefeito, veio à noite, caidinha, num presságio da perdição que crispou na porta. Assobio largo, tapete para o rebolado, ela girou. Levado no olhar dum cão, Serafim soltou a ferida, lambeu o beiço, deu bote e pelejou para cair no encardido. Denise, penúltimo enfeite da reboladeira, gostara do capô do baitola.

Três dias e ele achou Denise uma sabida. Deu nada. Na cama, lambuzado, batizou-a Alzira. O fuxiqueiro do povo sobrou e sete luas apagadas foi o tempo fora do batente, fincado nos lençóis do sobrado pelancudo. A rala freguesia jogava na mão do basbaque, que corria o arame para a gaiata. Coisa feita. Arruína.

Desavisada, a mulher mendigou por artista na rua porque o último querer da febre de Denise contagiara o mau juízo de Alzira. O chifrudo, mais desavisado, pinçou o enfarte ao invadir o mimo sem pestanejo, o quarto dos fundos só dela. Um ateliê improvisado, com Alzira em pêlo no chão e o prometido rabudo no ensaio do pincel, faziam do retrato do avô, coisa do espólio de D. Manteiga, testemunha. Serafim sangrou os dois. Para apagar a luz, esforçou-se. Ficou cego de tal modo que não viu o avô, metido a Dalí do Cordel nos tempos de baião sem culpa, rolar uma lágrima no retrato.

Reconheceram Serafim no Mercado. Lembrava do cabresto do pai e tropeçava.

Imagem: Oswaldo Goeldi ("Abandono")

10 julho 2008

Qüiproquó

Valores é plural da idéia solta e vaga que dizem rechear a moral, outra idéia flutuante e sem RG. De tanto lhe falarem e apontarem, feito a mais astuta carola com o dedo em riste e dirigido à dama do baixo meretrício, extraiu-se a única certeza de um suco abstrato: cada um tem os seus valores, mesmo que não saibamos dizer o que são, de onde vêm e para que servem. E, se fabulamos “cada um no seu cada um”, a coisa fica mais relativona, gotículas de ameba sobem e descem no ar, tudo legalize e naquele “vamo que vamo”, take it easy, entre outras amareladas.


Uma dúzia é a quantidade de vezes em que, embora com mala na mão e o tempo dando uma de inimigo, já fui obrigado a esperar um fluxo de 10, 15 pessoas entrarem no vagão do metrô para apenas depois poder sair dele. Faz sentido, não? Você não acha? Lógico que faz, eu sempre estive equivocado em pensar que deveria sair antes dos outros entrarem. Quanta ignorância, a minha! Nada como viver. Papai já me dizia que a vida é uma escola. Uma escola bem ao contrário, mas vai assim mesmo.

Ontem, eu e um amigo aguardávamos uma vaga no estacionamento, posicionados atrás, como deve ser, à espera da saída de outro veículo. Neste momento, um Astra preto, que já havia ultrapassado aquele trecho, dá ré e insiste para que também nos afastemos. Se dependesse do caranguejo preto, uma fila inteira estaria em marcha ré, porque aquela vaga lhe pertencia, da mesma forma que os campos franceses estavam justapostos ao espólio real e azul de Luis XIV. Mas, meu amigo não se mexeu. Comprou a rixa. Buzinadas, caras emburradas, o estacionamento lembrava uma creche depois das briguinhas pelo jogo que acabou sem final, com a apelação do dono da bola que, claro, a levou para o quinto dos infernos.

Último ato: a mulher que estava no passageiro do Astra desce, se posta na vaga, só falta deitar no perímetro cobiçado e sujar seu casaco Adidas. Estacionamos mesmo assim. E ela, se fazendo de indignada, veio aos nossos ouvidos: “Vocês são muito sem educação, viu?”.

Isso são valores. É igual a bumbum.