No site Uma coisa e outra, o crítico Paulo Maldonado faz sua prece quando encerra um texto sobre o jornalista e escritor paulista João Antônio: “Seu filho Daniel, ao qual dedicou quase todos os livros, vivia em Houston e veio enterrá-lo. É herdeiro de preciosidades e, na hora devida, as trará a público. Torcemos”. Se não informaram a Maldonado, alguém o faça, pois não precisamos mais torcer. Os 12 metros quadrados da sala 2, localizada no prédio de uma biblioteca, abrigam uma chapeleira, uma escrivaninha e uma marquesa. As mobílias dividem o espaço com estantes abarrotadas de livros, jornais, revistas, cartas, discos, troféus e quatro quadros na parede. A biblioteca pertence à Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Assis, e o relicário da sala 2 atende pelo nome de Acervo João Antônio.
A professora da UNESP de Assis, Ana Maria de Oliveira, é a atual coordenadora do acervo. Ela conta que, após a morte solitária de João Antônio em outubro de 1996 no Rio de Janeiro, seu único filho, Daniel Pedro Ferreira, cedeu à instituição a biblioteca pessoal e objetos do pai. Os pertences estavam no apartamento alugado pelo escritor na Praça Serzedelo Corrêa, em Copacabana. Hoje, sob os cuidados do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da UNESP de Assis, o acervo reúne uma imensidão de livros. São obras do próprio João Antônio, de outros autores nacionais e estrangeiros, além de quase 1100 livros com dedicatórias de Caio Fernando Abreu, Jorge Amado, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Drummond, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, entre outros.
Os críticos da literatura e do jornalismo são unânimes em dizer que João Antônio se preocupou com os miseráveis, os marginalizados. São de sua autoria clássicos como Malagueta, Perus e Bacanaço e Abraçado ao meu rancor, livro homônimo do conto que mais define o escritor, segundo o professor da UNESP de Bauru, Marcelo Bulhões. Para ele, “a obra de João Antônio se constitui sob a forma da negatividade, do inconformismo e plasmada com os meios de expressão dos despossuídos. Ela está comprometida, até as vísceras, com a realidade social degradada”.
O mestrando da UNESP de Bauru, Cláudio Coração, visitou o acervo em Assis atrás dos textos da coluna “Corpo a Corpo”, assinada por João Antônio no jornal Última Hora. Coração também acredita que o jornalista “representava o grito dos desprovidos de badulaques modernosos e que sua obra dialoga com universos paralelos, à margem, soterrados pela ânsia, pela velocidade da sociedade e da cidade em mutação”.
O que mais impressiona os leitores de João Antônio é a forma como ele relatou os merdunchos, putas, vagabundas, pilantras, malandros, trabalhadores, otários e trambiqueiros. Bulhões e Coração destacam que o escritor, sem demagogia, defendia o enfrentamento com a vida, o que propiciou aproximar a sua narrativa jornalística à literatura. O próprio João Antônio já definira essa postura em “Corpo-a-corpo com a Vida”, do livro Malhação do Judas Carioca: “Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo crítico. É pouco. Romance-reportagem-depoimento. Ainda é pouco. Pode ser tudo isso trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra. E será bom. Perto da mosca. A mosca – é quase certo – está no corpo-a-corpo com a vida. Escrever é sangrar. Sempre, desde a Bíblia”.
No acervo descobre-se mais desse defensor do “escrever é sangrar”. Segundo Ana Maria, “João Antonio tinha absoluta consciência da posteridade”, o que se confirma com o bloquinho de anotações feitas em embalagens de cigarro que guardou. A impressão que se tem é a de que o escritor sabia que seria descoberto pelos pesquisadores. Merece destaque a sua vasta coleção de discos de 78 rotações e a de revistas literárias, acadêmicas e até pornográficas. Há diversas edições da Realidade, ousada revista da década de 1960 que teve João Antônio como um dos seus criadores em 1966. Nela, abordaria a prostituição em 1968, com “Um dia no cais”, o primeiro conto-reportagem brasileiro.
Duas impressões nos arquivos: João Antônio era atento aos amigos e extremamente organizado. Ana Maria lembra que “ele numerava as correspondências e até marcava no envelope se já as havia respondido”. Nas gavetas, pelo volume de cartas, percebe-se que o jornalista mineiro Manoel Lobato foi um de seus grandes confidentes. Outra preciosidade arquivada é a sua agenda, preenchida com contatos do escritor. Muitos são europeus e talvez lhe tenham sido úteis nas passagens pela Alemanha, Polônia, Tchecoslováquia e Espanha. Mas, João também fez da agenda seu guia de gírias. Na letra M, por exemplo, “malandreco” é “o mais verdadeiro dos malandros” e “marreco” um elegante sinônimo de “otário”.
No geral, restará ao visitante do acervo o contato com parte do mundo do jornalista-escritor que ainda cedo arrematou um Prêmio Fábio Prado e dois Jabutis. Na visita, poderá descobrir que o criador da expressão “imprensa nanica” no Pasquim e o jornalista do “corpo-a-corpo com a vida” era também um “consciente da posteridade”. Se tiver paciência, lerá as dedicatórias oferecidas a João, inclusive a de uma escritora ucraniana que em Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres anotou: “João Antônio, dizem que este livro ensina a amar. Mas você já sabe. Abraço da Clarice. 31 de março de 1977”.
Um comentário:
O OUTRO não é sujeito. não o vemos como protagonista social. Ainda mais na cidade vertiginosa. João Antônio, e tantos outros, apenas (???) envergaram o outro. Na humanização do relato, da apreensão, da fugacidade, da cena, do tempo, do espaço... João Antônio ENFRENTOU e destoou o coro dos contente, como tantos outros... mas, penso, caro bruno, que João Antônio foi o único a bater o papo com o louco das calçadas... o único a adentrar com os "loucos da cidade" a imensidão corrosiva da melancolia desvairada e repugante de nossa grande miséria. Talvez, este seja um motivo da perenidade de sua obra... cada dia, cada hora, mais retumbante, mais atual
Abraços
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