19 julho 2007

Imemoráveis

O cinematografado Truman Capote foi um “fotógrafo literário”. Reza a lenda, Capote lembrava de 95% das respostas dadas pelos entrevistados. O astro do romance de não-ficção era um gravador ambulante. Morreu em 1984 e, pelo que lembro, nunca participou de nenhum concurso de memória.

É verdade que essa matrona fugaz, a tal da memória, está na moda. A chamada primeira idade anda se arrepiando com a chamada terceira idade, toda vez que o Globo Repórter pára de filmar Pantanal e Amazônia para falar da ascensão do mal de Alzheimer. Ninguém quer esquecer nada. Na corrida pelas informações fáceis e apressadinhas, fast food mesmo, os esquecimentos sobram. E há um punhado de gente dizendo que isso é mal de brasileiro, o da memória curta. Que os caras pálidas daqui esqueceram o mensalão, a maleta, o Lula vermelho e o Chico Picadinho.

Há outras rabugices. Enquanto eu e você desejamos infinitos gigabytes, os mais antenados intelectuais tremem com a falta de perspectiva histórica da nova juventude. Certa vez, o educador Mário Sérgio Cortella fez seu mea-culpa, atacando os adultos de hoje, os jovens dos anos 70. Segundo Cortella, o desprezo da juventude dos anos 2000 pela infância que tiveram, aquela do esquema Bambole-Xuxa-Atari-Playmobil, dá um salto fantástico toda vez que os papais murmuram um “ah, rapaz, eu é que tive infância, viu?”.

Lembro de ter jogado um bocado de videogame e lembro do He-man, aquele que tinha a força. Não sei se o peão e mais bolas de gude fizeram falta. Sei que havia mais tempo, inclusive para lembrar. Mas, hoje, com tantos percalços, as memórias estão mais pequeninas e sem socorro que os chips mais nanicos e aclamados. O quê eu estava falando mesmo?

Deixem de lado Capote, o guru da memorização. Um João Antônio e outros inquietos foram os que saíram do lugar-comum da nossa imprensa repetitiva e vendida. Ou, ainda, os que enfrentaram a memória e a ela se agarraram. Foi João quem disse: “Há no país uma classe de homens sem remédio, os de memória. Tachados de saudosistas, chinfrins e velhos precoces, acabam falando sozinho”. Está certo, João! Foi falando “sozinho” que você nos deu doloridos testemunhos de que a memória é coisa que habita cada indivíduo, pois faz doer e alegrar em cada um. E porque é memória.

No caso brasileiro, repetir que “somos um país sem memória” é como dar um pontapé na bola e se retirar de campo, deixando o jogo para os esquecidos. Há outras duas desgraças além do chavão. A primeira é acreditarmos vagamente que memória apenas tem alguma coisa a ver com a decoreba dos vestibulares ou com as capacidades impessoais dos pen drives indispensáveis. Mas, a segunda desgraça dói mais. Está certo que um universo inteiro das nossas ruas e campos não será (não foi?) inscrito na História. Ou seja, não será História. O pior: não há (não houve?) nada minimamente humano que caberá nas colunas dos jornais com seus clichês ou, ainda, na virtualidade dos badulaques digitais. Os esquecidos são estes, os dispensados, para quem sequer revival ou momento-nostalgia haverá no espaço de armazenamento. Os humanos são gigantescos. E são imemoráveis.

02 julho 2007

O refúgio de João não é Copacabana

(como nem o Quiroga, tampouco o desinformado Lula sabem da data que o próximo Contexto sairá, me permitam a ilegal cesariana do texto que fiz graças ao acervo do bom e velho bacanaço, João Antônio)

No site Uma coisa e outra, o crítico Paulo Maldonado faz sua prece quando encerra um texto sobre o jornalista e escritor paulista João Antônio: “Seu filho Daniel, ao qual dedicou quase todos os livros, vivia em Houston e veio enterrá-lo. É herdeiro de preciosidades e, na hora devida, as trará a público. Torcemos”. Se não informaram a Maldonado, alguém o faça, pois não precisamos mais torcer. Os 12 metros quadrados da sala 2, localizada no prédio de uma biblioteca, abrigam uma chapeleira, uma escrivaninha e uma marquesa. As mobílias dividem o espaço com estantes abarrotadas de livros, jornais, revistas, cartas, discos, troféus e quatro quadros na parede. A biblioteca pertence à Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Assis, e o relicário da sala 2 atende pelo nome de Acervo João Antônio.

A professora da UNESP de Assis, Ana Maria de Oliveira, é a atual coordenadora do acervo. Ela conta que, após a morte solitária de João Antônio em outubro de 1996 no Rio de Janeiro, seu único filho, Daniel Pedro Ferreira, cedeu à instituição a biblioteca pessoal e objetos do pai. Os pertences estavam no apartamento alugado pelo escritor na Praça Serzedelo Corrêa, em Copacabana. Hoje, sob os cuidados do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da UNESP de Assis, o acervo reúne uma imensidão de livros. São obras do próprio João Antônio, de outros autores nacionais e estrangeiros, além de quase 1100 livros com dedicatórias de Caio Fernando Abreu, Jorge Amado, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Drummond, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, entre outros.

Os críticos da literatura e do jornalismo são unânimes em dizer que João Antônio se preocupou com os miseráveis, os marginalizados. São de sua autoria clássicos como Malagueta, Perus e Bacanaço e Abraçado ao meu rancor, livro homônimo do conto que mais define o escritor, segundo o professor da UNESP de Bauru, Marcelo Bulhões. Para ele, “a obra de João Antônio se constitui sob a forma da negatividade, do inconformismo e plasmada com os meios de expressão dos despossuídos. Ela está comprometida, até as vísceras, com a realidade social degradada”.

O mestrando da UNESP de Bauru, Cláudio Coração, visitou o acervo em Assis atrás dos textos da coluna “Corpo a Corpo”, assinada por João Antônio no jornal Última Hora. Coração também acredita que o jornalista “representava o grito dos desprovidos de badulaques modernosos e que sua obra dialoga com universos paralelos, à margem, soterrados pela ânsia, pela velocidade da sociedade e da cidade em mutação”.

O que mais impressiona os leitores de João Antônio é a forma como ele relatou os merdunchos, putas, vagabundas, pilantras, malandros, trabalhadores, otários e trambiqueiros. Bulhões e Coração destacam que o escritor, sem demagogia, defendia o enfrentamento com a vida, o que propiciou aproximar a sua narrativa jornalística à literatura. O próprio João Antônio já definira essa postura em “Corpo-a-corpo com a Vida”, do livro Malhação do Judas Carioca: “Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo crítico. É pouco. Romance-reportagem-depoimento. Ainda é pouco. Pode ser tudo isso trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra. E será bom. Perto da mosca. A mosca – é quase certo – está no corpo-a-corpo com a vida. Escrever é sangrar. Sempre, desde a Bíblia”.

No acervo descobre-se mais desse defensor do “escrever é sangrar”. Segundo Ana Maria, “João Antonio tinha absoluta consciência da posteridade”, o que se confirma com o bloquinho de anotações feitas em embalagens de cigarro que guardou. A impressão que se tem é a de que o escritor sabia que seria descoberto pelos pesquisadores. Merece destaque a sua vasta coleção de discos de 78 rotações e a de revistas literárias, acadêmicas e até pornográficas. Há diversas edições da Realidade, ousada revista da década de 1960 que teve João Antônio como um dos seus criadores em 1966. Nela, abordaria a prostituição em 1968, com “Um dia no cais”, o primeiro conto-reportagem brasileiro.

Duas impressões nos arquivos: João Antônio era atento aos amigos e extremamente organizado. Ana Maria lembra que “ele numerava as correspondências e até marcava no envelope se já as havia respondido”. Nas gavetas, pelo volume de cartas, percebe-se que o jornalista mineiro Manoel Lobato foi um de seus grandes confidentes. Outra preciosidade arquivada é a sua agenda, preenchida com contatos do escritor. Muitos são europeus e talvez lhe tenham sido úteis nas passagens pela Alemanha, Polônia, Tchecoslováquia e Espanha. Mas, João também fez da agenda seu guia de gírias. Na letra M, por exemplo, “malandreco” é “o mais verdadeiro dos malandros” e “marreco” um elegante sinônimo de “otário”.

No geral, restará ao visitante do acervo o contato com parte do mundo do jornalista-escritor que ainda cedo arrematou um Prêmio Fábio Prado e dois Jabutis. Na visita, poderá descobrir que o criador da expressão “imprensa nanica” no Pasquim e o jornalista do “corpo-a-corpo com a vida” era também um “consciente da posteridade”. Se tiver paciência, lerá as dedicatórias oferecidas a João, inclusive a de uma escritora ucraniana que em Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres anotou: “João Antônio, dizem que este livro ensina a amar. Mas você já sabe. Abraço da Clarice. 31 de março de 1977”.